Trindade: um dogma de Constantino?

 Rodrigo P. Silva, doutor em Teologia

 Resumo: Grupos antitrinitarianos dissidentes do adventismo têm alegado que a doutrina da Trindade foi formulada no Concílio de Nicéia (325 d.C.), sob a influência do imperador romano Constantino. O presente artigo demonstra a existência de várias alusões à Trindade já nos escritos dos Pais da Igreja pré-nicenos. O autor analisa o significado histórico daquele evento e seus antecedentes teológicos, bem como o real papel de Constantino no processo. 

Introdução

Entre os vários ataques produzidos por movimentos antitrinitarianos está o argumento histórico de que a Trindade é fruto do Concílio de Nicéia e constitui, portanto, um dogma de Constantino. Tal alegação pode ser encontrada tanto em sites da Internet quanto nos materiais publicados por grupos dissidentes do adventismo.

Em matéria veiculada pelo site www.adventistas.com, Ennis Meier declarou que “o Concílio de Nicéia deu origem à crença em três deuses. A crença na trindade de pessoas Divinas não teve origem na Bíblia, mas no Concílio ou Sínodo de Nicéia, o primeiro concílio ecumênico da história, no qual participaram 318 bispos, no ano 325 da era cristã”.1

Suas considerações acerca do encontro chegam ao ponto de sustentar que “a formulação do dogma contra Ário marcou oficialmente o surgimento da Besta do Apocalipse”.2 Tal afirmação destoa fortemente de todas as interpretações do adventismo histórico,3 inclusive de Ellen White,4 que viam nesta besta uma alusão não a Constantino, mas ao papado, especialmente a partir do quarto século.

Embora com Constantino a Igreja enfrente um profundo processo de apostasia, é importante lembrar que as nuances proféticas de Apocalipse 13 aludem a um período posterior que se inicia com a supremacia papal e o início dos 1.260 anos em 538 d.C. Constantino não foi um papa. Mesmo que tenha agido como líder da Igreja nalgum momento, nunca arvorou para si o título de Pontifex Maximus do cristianismo. Ademais, o bispo de Roma não possuía no quarto século o poder político-absolutista que faria do papado a maior autoridade no mundo ocidental. Logo, seria estranho vincular Constantino à imagem da Besta de Apocalipse 13.5 Munido da referência a um site que promove o ateísmo, outro escritor que se denomina “irmão X” também se valeu da contundente afirmação de que “com Constantino começa a criação da Trindade”.6 Ele ainda acrescenta que o voto dos bispos a favor da posição trinitariana se deu por pressão do imperador, que precisava do respaldo conciliar. Ora, o estranho é que Constantino não se valia de “votos” para fazer cumprir seus desígnios. Apenas expedia um decreto (como o fez no edito de Milão e no decreto dominical) e todos se sujeitavam. Por que, então, no caso da Trindade, dependeria do apoio episcopal da Igreja? Bastava-lhe um anúncio imperial e o dogma estaria oficializado. Esta questão não parece ter sido avaliada por nenhum dos artigos até agora apresentados.

Seguindo no mesmo viés de Meier e do “irmão X”, Ricardo Nicotra também advoga que este período de “paganização” [sic] do cristianismo foi o berço da trindade, e ainda acentua que é “importante lembrar que o Concílio de Nicéia não estabeleceu apenas os fundamentos para a doutrina da Trindade. Outras decisões foram tomadas pelos bispos da igreja católica em 325.”7 Estas decisões, conforme exemplifica o autor, envolviam a transferência do dia de descanso semanal do sábado para o domingo.

Embora este último autor, citando uma fonte da Internet (Wikipedia), cometa um erro de natureza histórica ao vincular o domingo a Nicéia – pois é sabido que o decreto dominical de Constantino data de quatro anos antes do Concílio (321 d.C.)8 – sua conclusão deve ser analisada para ser bem compreendida. Para ele, uma vez que Constantino convocou a reunião, conclui-se que o mesmo homem que promulgou a primeira lei dominical foi o “pai do dogma da Trindade”. Isto, é claro, deduzindo como certa a idéia de que tal doutrina teria seu início em Nicéia. Se for assim, a crença em um Deus Triúno seria tão herética quanto a guarda do domingo, pois viriam da mesma fonte apóstata.

O objetivo, portanto, deste artigo é avaliar a procedência histórica de tal afirmação. Ou seja, seria a Trindade um dogma de Constantino? Suas origens se devem ao Concílio de Nicéia?

Para responder a estas perguntas, é necessário que recorramos aos escritos dos primeiros pensadores cristãos que viveram entre o segundo e o terceiro século, isto é, imediatamente depois do período apostólico e antes do Concílio. A lógica é simples: se o argumento antitrinitariano estiver certo, ou seja, se a Trindade é mesmo uma doutrina constantiniana, não devemos encontrar neste período inicial nenhuma defesa à idéia de um Deus Triúno. Pelo contrário, o ensinamento da época deverá ser bem diferente, afirmando que Cristo é apenas um segundo ser existente depois do Pai, e o Espírito Santo uma emanação impessoal de ambos.

Em seguida a este excurso pelos Pais da Igreja, apresentaremos brevemente uma análise dos elementos que motivaram o Sínodo Niceno. É importante verificar qual a real atuação de Constantino em todo o processo. Ademais, um balanço desapaixonado do evento revelará que conseqüências, de fato, Nicéia trouxe para a Igreja, pois, pelo que se percebe nalguns autores, há a tendência de se atribuir ao encontro elementos de apostasia que não fizeram parte de sua pauta.9

Não se trata, portanto, de um artigo bíblico-exegético, mas de uma pesquisa de cunho histórico. Logo, não se deve estranhar a ausência de textos bíblicos neste estudo. As bases bíblicas da Trindade são apresentadas noutros artigos e se mostram excelentes. A discordância de alguns não autoriza concluir que tais bases não existam. Afinal, muitos também negam a validade do sábado no Novo Testamento, embora os adventistas há mais de um século venham evidenciando a solidez bíblica deste ensinamento.

Pais da Igreja

Em relação ao recurso que se faz aos Pais da Igreja que viveram antes de Nicéia,10 percebe-se que existe uma aproximação por demais piedosa por parte de autores católicos e outra mais cautelosa por parte de autores protestantes. É que o catolicismo sempre aceitou a tradição pós-bíblica como legítima fonte de doutrinas,11 o que eleva os Pais da Igreja à categoria de “ autores inspirados”, cuja função norte-adora era a mesma atribuída aos escritores bíblicos.12 Já o protestantismo com seu ideal de sola scriptura preferiu ver nos escritos dos Pais apenas uma loca probantia da teologia sistemática, ou seja, estudá-los como testemunhas históricas do comportamento progressivo de uma doutrina através dos tempos e não como fonte autoritativa de uma crença.13

Com estes elementos em mente, é importante desdobrar alguns esclarecimentos em relação às citações patrísticas que, a seguir, serão feitas. Uma abordagem adventista destes escritores compreenderá que:

1) Os Pais da Igreja testemunham o modo como o cristianismo primitivo, antes de sofrer qualquer influência do catolicismo medieval, entendia certas passagens das Escrituras. Assim, podem oferecer uma visão mais desanuviada das doutrinas apostólicas, pois alguns deles, como Clemente de Roma e Policarpo, conheceram pessoalmente os apóstolos e receberam aprovação destes como líderes da Igreja.

2) Embora não se possa dizer que houvesse uma perfeita “unanimidade de pensamento” neste período, é possível afirmar que eles já tinham bem nítida a diferença entre ensino apostólico (ortodoxia)14 e os movimentos heréticos, especialmente aqueles oriundos de Marcion e do gnosticismo.15 Elementos básicos da fé como a filiação divina de Cristo, sua encarnação, o juízo final e outros já estavam firmemente estabelecidos desde os tempos antigos.

3) Devido ao caráter historicamente inicial de seus tratados, é importante que o leitor não busque em seus argumentos a nomenclatura teológica própria dos tempos pós-nicenos. Termos que mais tarde passaram a ser técnicos na teologia não possuíam ainda aquele tratamento unânime e cuidadoso que se exigirá de um tratado teológico contemporâneo. Hypostasis, por exemplo, era um termo usado por alguns escritores para referir-se à pessoa, enquanto outros o empregavam como sinônimo de substância.16 O mesmo se dá com seus conceitos que por estarem numa sistematização inicial não abarcarão todos os detalhes de uma discussão que lhes é posterior.

4) A despeito de seu grande valor testemunhal, os Pais da Igreja não devem ser usados como fonte de doutrina. Na verdade nenhum deles reclamou para si inspiração divina ou se declarou profeta. A fonte básica e única da fé cristã era e continua sendo a Bíblia. Quaisquer escritos posteriores servirão apenas para facilitar a compreensão do que está no Santo Livro e não para produzir novas crenças.

5) O valor testemunhal destes escritores está representado profeticamente na carta apocalíptica à Igreja de Esmirna (Ap 2:8-11), pois foi neste período que eles viveram. Note que nenhuma repreensão é apresentada em relação aos cristãos daquele tempo. Pelo contrário, sua fé é elogiada com muito vigor, pois muitos deles tiveram que assinar seu testemunho com o próprio sangue de seu martírio.

6) É importante repetir que o proposto neste artigo não é endossar indiscrimi-nadamente toda doutrina dos Pais da Igreja, mas verificar, pelo seu testemunho, se a Trindade era crida na Igreja pré-nicena ou se, como dizem alguns, seria fruto apenas do Concílio ocorrido no quarto século.

Trindade antes de Nicéia

USO DO TERMO “TRINDADE”

Uma verificação no index geral da Ante-Nicene Fathers e da Sources Chrétiennes17 que formam a coleção de todos os escritores cristãos mais antigos (inclusive os anteriores a Nicéia) nos mostra que muito antes do Concílio, a crença na Trindade já havia sido sistematizada entre os cristãos. Aliás, o próprio termo latino “Trindade” foi usado em 212 d.C. por Tertuliano, 113 anos antes de Nicéia! Falando da Igreja de Deus, ele menciona o Espírito “no qual está a Trindade de uma Divindade: Pai, Filho e Espírito Santo” (in quo est trinitas unius diuinitatis, Pater et Filius et Spiritus sanctus)18

A tradução latina da obra de Orígenes também menciona o termo ao considerar que “o batismo de salvação não está completo a não ser [que seja exercido] pela autoridade da excelentíssima Trindade de todos eles, que é constituída do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Assim, temos ajuntado o nome do Espírito Santo ao Deus eterno e ao seu único Filho”.19 Tal comentário torna-se relevante se entendermos que, talvez já nesse tempo, houvesse alguma controvérsia quanto à fórmula batismal e a genuinidade de Mateus 28:19.

Teófilo, escrevendo quase meio século antes de Tertuliano e Orígenes, usa a expressão Triados, que certamente seria uma equivalência semântica de trinitas ou seu original em grego. Note a comparação poética que ele usa ao relacionar a Trindade ao primeiro capítulo de Gênesis: “os três dias que estão antes dos três luminares [da Criação] são tipos da Trindade (Triados) de Deus”.20

Levando-se em consideração que Teófilo fala de “tipos da Trindade”, é razoável supor que ele não esteja falando de algo novo ou criando um neologismo. A expressão textual supõe o uso de um termo já conhecido entre os leitores. Logo, não seria estranho imaginar que o mesmo vocábulo aparecesse em outros escritos do mesmo período que se encontram perdidos em nossos dias.

Assim, retrocede para cerca de um século e meio antes de Nicéia o uso técnico do termo Trindade, legitimamente reconhecido na literatura cristã. Mas talvez alguém pergunte: por que este termo não aparece na Bíblia? Para responder a esta questão é preciso compreender que, a partir do século segundo, o centro missiológico da Igreja transferiu-se em definitivo do ambiente judeu-palestino para o mundo greco-romano. O trabalho iniciado por Paulo entre os gentios vê-se finalmente estabilizado no ambiente gentílico e começa a gravitar em torno de questões que não haviam sido levantadas no ambiente judaico.

A Igreja viu-se, então, obrigada a expressar sua fé de um modo compreensível para aqueles que não vinham de uma cultura vétero-testamentária, mas tinham seu pensamento regido pelos conceitos da filosofia grega. Questões ontológicas antes não sistematizadas começaram a invadir os círculos cristãos e, deste modo, os escritores tiveram de cunhar termos helenísticos para tornar inteligível a fé do Novo Testamento. Contudo, tal exercício não significava de modo nenhum uma apostasia do ensino apostólico. O próprio João usou o conceito filosófico do logos para expressar com continuidades e diferenças a doutrina da encarnação numa linguagem compreensível aos efésios influenciados pela doutrina de Heráclito.

CONCEITOS PATRÍSTICOS SOBRE A TRINDADE

Clemente de Roma, que viveu no fim do primeiro século, escreveu por volta do ano 96 uma carta de conforto aos cristãos de Corinto, que estavam sendo perseguidos por Domiciano (o mesmo imperador que deportou João para a ilha de Patmos). Ao falar da união da Igreja ele diz: “Não temos nós [todos] um único Deus e um único Cristo? E não há um único Espírito da Graça derramado sobre nós?”21 Embora este não seja um texto de “defesa” da Trindade, chama-nos a atenção sua “linguagem trinitariana” que subentende uma idéia triúna de Deus. Outros autores são ainda mais claros em sua exposição.

Inácio († 105 d.C.), que foi o segundo sucessor de Pedro como pastor em Antioquia,22 também ensinava a doutrina da Trindade. Mártir durante o reinado de Trajano, ele escreveu uma epístola aos cristãos da Trália, dizendo-lhes que, a despeito do sofrimento, continuassem “em íntima união com Jesus Cristo, o nosso Deus”23 – o que acentua a ideia da divindade de Cristo. Num outro manuscrito, onde uma versão mais longa é preservada, o mesmo autor adverte os irmãos contra aqueles que ensinavam doutrinas contrárias à fé dos apóstolos. Entre seus ensinos equivocados estaria a ideia de que “o Espírito Santo não existe” e que “o Pai, o Filho e o Espírito Santo seriam a mesma pessoa”.24

Justino, cognominado “o Mártir”, foi outro que escreveu várias apologias em favor do Cristianismo e contra a supremacia da filosofia grega. Num de seus textos, concluído por volta de 160 d.C., ele diz: “Já que somos considerados ateus, nós admitimos nosso ateísmo em relação a estes [vários] tipos de deuses [do politeísmo]. Mas, no que diz respeito ao verdadeiro Deus, o Pai da justiça e temperança …, ao Filho, … e ao Espírito Profético, [saibam que] nós os adoramos e reverenciamos.”25

Atenágoras, também respondendo à acusação de serem os cristãos chamados de ateus por não aceitarem o politeísmo pagão, escreveu em 175 d.C.: “Ora, quem não ficaria perplexo em ouvir chamar de ateus pessoas que pregam de Deus o Pai, de Deus o Filho e do Espírito Santo e que declaram serem um no poder, mas distintos na ordem?”26 Noutra passagem ele ainda diz: “Os cristãos reconhecem a Deus e a seu Logos. Eles também reconhecem o tipo de unicidade que o Filho tem com o Pai e que tipo de comunhão o Pai tem com o Filho. Ademais, eles sabem o que é o Espírito e que a unidade é [formada] destes três: O Espírito, o Filho e o Pai”.27 “Nós reconhecemos um Deus, um Filho e um Espírito Santo, os quais são unidos na essência.”28

Ireneu de Lion é outro importante autor deste período. Convertido na adolescência, ele foi discípulo de Policarpo que, por sua vez, foi discípulo do apóstolo João. Sua principal obra, intitulada Contra heresias, dispõe de cinco volumes e foi escrita por volta de 177 d.C. Respondendo às idéias gnósticas de seu tempo, ele toma o cuidado de diferenciar, por exemplo, o “fôlego [espírito] de vida” dados às criaturas em geral, do “Espírito Santo”, que é Deus habitando com o crente.29

Explicando ainda que Deus é diferente dos homens, Ireneu fala da Palavra e da Sabedoria do Criador como sendo duas pessoas divinas unidas a uma terceira (o Pai) numa única divindade.30

Hipólito (c. 205 d.C.), autor do mais antigo comentário de Daniel de que dispomos, disse que “a Terra é movida por estes três: o Pai, o Filho e o Espírito Santo”.31 Noutra passagem, após citar a fórmula batismal em nome do Pai, do Filho e do Espírito, ele demonstra que já no seu tempo havia os que negavam esta doutrina, pois diz: “qualquer um que omitir um destes três, falha em glorificar a Deus de um modo perfeito. Pois é por meio desta Trindade (Triados) que o Pai é glorificado.”32

Sendo o último teólogo de peso a escrever em grego e não em latim, Hipólito merece um destaque por ter sido, nas palavras de W. Walker, “um dos primeiros antipapas” da história.33 Ele foi veemente em sua oposição a Calixto, bispo de Roma, que já naqueles idos pretendia a centralização do poder. Calixto chegou a disciplinar Hipólito por sua teologia acerca do Logos divino, o que demonstra que seus conceitos trinitarianos provinham de sua consciência, e não de uma imposição arbitrária do bispo de Roma. Cripriano ( † 250 d.C.), que também cita como válida a fórmula batismal mateana,34 explicando que “ele [o evangelista] sugere aqui a Trindade, na qual as nações foram batizadas”.35

Embora a crítica textual coloque como espúrio o texto de 1 João 5:7,36 é digno de nota que Cipriano parece fazer referência a esta interpolação quando diz: “O Senhor disse: ‘Eu e o Pai somos um’ e novamente está escrito acerca do pai do Filho e do Espírito Santo: ‘e estes três são um’”.37 É claro que tal citação, indireta, não é suficiente para qualificar como digna a interpolação da comma joanina. Não obstante, é possível assumir que esta interpolação ou parte dela já fosse conhecida pelos pais latinos bem antes de Nicéia.

O que aconteceu em Nicéia?

ANTECEDENTES TEOLÓGICOS

Por volta de 325 d.C. a igreja estava dividida por uma polêmica teológica iniciada no Egito. Um grupo liderado por Ário e Eusébio de Nicomédia, ensinava que Cristo era um semi-deus “semelhante”, porém não totalmente igual, ao Pai. Outro, liderado por Alexandre, ex-bispo de Ário, e por Atanásio, via nisto uma aproximação muito perigosa com o gnosticismo divulgado no Egito. Eles lembravam que a confissão mais antiga dos cristãos dizia que Cristo está em pé de igualdade com Pai. Já um terceiro grupo liderado por Eusébio de Cesaréia (um adulador de Constantino, segundo Ellen White38), via com neutralidade a questão e preferia propor com urgência uma declaração que abarcasse os dois lados.

Para entender as bases do ensino ariano e da preocupação de Atanásio quanto a este tipo de abordagem, é importante compreender a sedução intelectual da filosofia grega sobre a teologia do quarto século. Ellen White comenta de modo muito apropriado que “mesmo antes do estabelecimento do papado, os ensinos filosóficos pagãos haviam recebido atenção e exercido influência na igreja”.39

O que era para ser apenas uma abordagem da fé para o mundo greco-romano tornou-se uma sobreposição do helenismo sobre a teologia cristã. Embevecidos pela cultura grega, Ário e seus discípulos não conseguiram escapar à sedução da filosofia gnóstica tão disseminada entre os alexandrinos. Para estes, o maior problema da existência humana estava no dualismo idealizado por Platão e aprofundado por correntes posteriores. Era um pressuposto inquestionável acreditar que o espírito (naturalmente bom) e a matéria (naturalmente má) jamais coexistiam em sintonia. Se assim o fosse, o primeiro seria contaminado pelo último.

Portanto, o desafio agora era adequar doutrinas judaico-cristãs a este universo de idéias que não admitia a matéria como criação direta de um Deus-Espírito, nem a encarnação como uma realidade tangível. Se Deus houvesse criado o mundo ou se encarnado de verdade, sua divindade estaria seriamente comprometida – pensavam os gnósticos.

Assim, modelos alternativos foram criados para acomodar a doutrina cristã a este padrão filosófico. Um destes pode ser visto nos manuscritos coptas (sahidico) encontrados por James Bruce, em 1769. Para resolver o problema da existência da matéria que não poderia ser atribuída a um Deus-Espírito, eles diziam que o Altíssimo criou um deus menor que exerceu o papel de artífice (demiurgo) para a criação do mundo. Assim, a matéria veio à existência sem que Deus se contaminasse criando-a diretamente com as mãos. Cristo era este artífice que hoje se faz presente no mundo através do espírito (pneuma) que é sua energia impessoal. O conhecimento disto (gnosis) é o que salva a humanidade.

CONVOCAÇÃO CONCILIAR

Enquanto o cristianismo apostólico era a democratização do mistério de Deus – conceito herdado do judaísmo – o gnosticismo era a sofisticação do mistério, pois o seu entendimento não advinha de uma revelação mas da compreensão racional dos iniciados que não tinham dificuldades intelectuais para explicá-lo. Para eles, o que fugia à compreensão racional não era doutrina de Deus e isso estava causando uma preocupante divisão no cristianismo do Egito e de Antioquia (cidade natal de Ário). Por isso, Alexandre e Atanásio escreveram cartas a Roma pedindo um encontro que pusesse termo à questão.

Eusébio e seus seguidores também queriam a todo custo pôr fim à disputa, não porque estivessem preocupados com a ortodoxia da doutrina, mas porque temiam que uma divisão, àquela altura dos acontecimentos, fizesse a Igreja perder os privilégios que Constantino estava promovendo.

O próprio imperador, ao contrário do que muitos pensam, não tinha interesse algum em “promulgar” uma doutrina trinitária para a Igreja. Já fizemos menção no início de que, se este fosse o seu intento, não precisaria convocar um Concílio para endossar o seu desejo. Bastava-lhe repetir o ato de quatro anos antes, quando promulgou o decreto dominical, e assinar um edito ordenando a todos que adorassem ao Deus-Triúno.

Ademais, Constantino nem possuía conhecimento suficiente para se posicionar diante da controvérsia que ocupava a teologia grega.40 Uma carta por ele enviada por meio do bispo Hósio de Córdova confirma seu desconhecimento doutrinário a este respeito. Ali ele afirma que o problema que os bispos estavam discutindo acerca da natureza de Cristo era “uma questão sem proveito”.41

Foram os próprios bispos que o convenceram a convocar o Concílio para resolver a questão e o partido trinitariano de Alexandre era, sem dúvida, o mais fraco de todos. Chega a ser um milagre que o texto de Nicéia não tenha favorecido o arianismo porque estes, certamente, tinham mais recursos políticos que Atanásio e Alexandre. Tanto o é que, embora os arianos fossem derrotados no Concílio, os partidários de Eusébio de Nicomédia empreenderam uma verdadeira campanha, após Nicéia, para derrotar Atanásio e restaurar Ário ao poder.

O mais surpreendente é que, protegido pelo imperador, Ário começou, de fato, a reconquistar seu poder que perdera e a influenciar a política da igreja. Eusébio, por sua vez, convenceu Constantino a enviar Atanásio para o desterro e recolocar Ário em seu lugar como bispo de Alexandria – o que quase aconteceu, não fosse o falecimento de Ário na noite anterior à cerimônia de sua investidura, em 336 d.C. Assim, o plano era que o imperador convocasse um novo Concílio corrigindo Nicéia e desse ganho de causa aos arianos.

Sob tais circunstâncias, a fé trinitária parecia, se não oficialmente renegada, praticamente condenada, principalmente depois que Constantino declarou seu desejo de ser batizado por Eusébio de Nicomédia num ritual antitrinitariano. A chamada fé nicena só não chegou ao fim, porque Constantino acabou morrendo em 22 de maio de 337, poucos dias depois de ser batizado.

Dois últimos aspectos ainda precisam ser esclarecidos: a grande discussão do Concílio de Nicéia não era a Trindade em primeiro lugar, mas a natureza de Cristo em relação ao Pai. Foi somente no credo de Atanásio, produzido posteriormente, que o assunto “Trindade” apareceu de modo mais claro. Além disto, é importante notar que o credo niceno não diz nada quanto ao Espírito Santo ser ou não uma pessoa. A literatura antitrinitária se confunde na seqüência histórica apresentando como “Credo Ciceno” o que na verdade seria o Credo Niceno-Constantinopolitano de 381, proclamado depois da morte de Constantino.42

A Confissão Nicena de 325 se apresenta da seguinte maneira:

Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus cristo, o Filho de Deus gerado pelo Pai, unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão no céu e as que estão na Terra; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, e se encarnou e se fez homem e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu, e novamente deve vir e no Espírito Santo.

Segue-se a esta confissão os juízos emitidos em relação a alguns ensinos heréticos:

E a quantos dizem: “Ele era quando não era” e “antes de nascer, Ele não era” ou que “foi feito do não existente”; bem como a quantos alegam ser o Filho de Deus “de outra substância ou essência” ou “feito” ou “mutável” ou “alterável” a todos estes a igreja católica e apostólica anatematiza.43

Conclusão

Como se vê, a despeito das insatisfações de alguns, prevaleceu em Nicéia a ideia de formular um texto enxuto, sem muitas explicações e que agradasse ao máximo a todas as correntes. Se houve, portanto, uma atmosfera política por detrás do documento conciliar, esta foi a da neutralidade – desviar a questão para evitar mais divisões. Constantino, é bom lembrar, havia acabado de vencer Licínio na luta pelo poder e sua prioridade era manter o império unido. Um cisma no cristianismo não seria bem-vindo naquele contexto. Daí o tom neutro sobre um assunto que, em princípio, geraria muitas controvérsias.

No fim das reuniões, restou aos arianos o incômodo maior, pois, apesar das tentativas de neutralidade, o documento acabou ecoando uma antiga tradição apostólica que apresentava a Cristo como consubstancial ao Pai. E o mais curioso é que Eusébio e a maioria dos arianos assinaram o documento em concórdia com seu conteúdo. Apenas Ário e dois amigos se recusaram a fazê-lo.

O sentido exato destas assinaturas é difícil precisar. Contudo, vê-se como infundada a declaração de que Constantino seria o Pai da doutrina trinitária usada para atrair o politeísmo para a Igreja. Pelo contrário, vinha de Ário e Eusébio a tentativa de trazer uma doutrina politeísta para dentro do cristianismo, pois estes apresentavam a Cristo como um “segundo” deus, menor que o Pai, mas igualmente divino e que se assemelhava muito ao “demiurgo”, ou deus menor do gnosticismo alexandrino. Em Nicéia, em todo o caso, a Igreja pelo menos não tentou penetrar o mistério de Deus ou descrevê-lo como o fez Ário imbuído pela ideia de transcendência vinda da filosofia grega. Esta foi a verdadeira natureza da discussão que de modo nenhum pode ser tomada como a genitora de uma teologia trinitária.


Referências:

1. Ennis Meier, “O Concílio de Nicéia, origem da crença em três deuses”. Disponível em <http://www.adventistas.com/artigos/html>. Acesso em 13 de janeiro de 2004.

2. Ennis Meier, “História: como Constantino tornou-se o pai do dogma católico da Trindade”. Disponível em <http://www.adventistas.com/artigos/html>. Acesso em 13 de janeiro de 2004. Grifo acrescentado. 3. Urias Smith, Daniel and Revelation – The Response of History to the Voice of Prophecy A Verse by Verse Study of These Important Books of the Bible (Mountain View, CA: Pacific Press, 1918), 558ss.; Stephen N. Haskell, The Story of the Seer of Patmos (Nashville, TN: Southern Publishing Association, 1977), 228-230. Haskell ainda estabelece o fato de que a Besta papal de Apocalipse 13 é uma institução que deveria surgir após a divisão de Roma em dez reinos, o que aconteceu apenas em 476 d.C.

4. Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1996), 52, 438 e 439.

5. Sobre a importância da data de 538 d.C. para o entendimento adventista da profecia, ver A. Timm, “A Importância das datas de 508 e 538 d.C. para a supremacia papal”, in Parousia (2005:1), 7-18.

6. Irmão X, “Cristianismo é ridicularizado pelos ateus por causa da crença na Trindade”. Disponível em <http://www.arquivoxiasd.com.br/ateu.htm>, acesso em 22 de setembro de 2005.

7. Ricardo Nicotra, “Eu e o Pai Somos Um” (São Paulo: Ministério Bíblico Cristão, 2004), 89.

8. O decreto dominical constantiniano foi promulgado em março de 321. Seu texto pode ser encontrado no Codex Justinianus, Corpus Júris Civilis Codicis Líber 3, tit. 12, parágrafo 3.

9. Além do já mencionado erro de Nicotra, que atribui ao Concílio a mudança do sábado para o domingo (vide nota 7), autores como Dan Brown (autor do best seler O Código Da Vinci) sugerem que foi o Concílio de Nicéia que determinou o Cânon escriturístico, de modo que a Bíblia que temos hoje seria composta de acordo com o decreto constantiniano e não conforme um real desígnio de Deus.

10. O título “pais da Igreja” será aqui usado em seu sentido técnico, conforme a adoção dos estudos de patrística e não no sentido católico de guardiões absolutos da ortodoxia cristã.

11. F. Ardusso, “Tradizione”, in: G. Barbaglio, S. Dianich, Nuovo Dizionario di Teologia (Roma: Paoline, 1979), 1772.

12. Esta equiparação com a Bíblia não é sempre explícita, na literatura católica, mas é facilmente detectada nas entrelinhas do discurso. É que o catolicismo, especialmente aquele posterior ao Vaticano II, parece ter compreendido a impopularidade teológica de tal afirmação diante do mundo protestante. A primeira redação da Constituição dogmática Dei Verbum, que mantinha ainda a concepção católica de duas fontes de revelação (Bíblia e Tradição) recebeu uma severa intervenção do bispo belga De Smedt que convenceu o comitê a reformular completamente o texto original. Ele declarou: “Segundo o nosso parecer, o esquema atual falha notadamente em seu caráter ecumênico. Ele não representa progresso para o encontro com não católicos, mas um empecilho; muito mais: é prejudicial.” Citado por João Batista Libânio, Teologia da Revelação a partir da Modernidade (São Paulo: Loyola, 1992), 386. Para uma discussão pré-conciliar sobre esta questão veja: Pierre Benoit, L’actualité dês pères de l’Eglise (Neuchâtel: Éditions Delachaux et Niestlé S.A., 1961), 10-15; F. Cayré, Patrologie et Histoire de la Theologie (Paris: Desclée & Cie, 1953), 3-7; J. Quasten, Iniciation aux peres de l’Eglise (Paris: Ed. Du Cerf, 1955), 4-8.

13. Reynold Seeberg, Manual de Historia de las Doctrinas (Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1967), 1: 29-37; J. N. D. Kelly, Early Christian Doctrines (Londres: A&C Black, 1977), 21-37.

14. Embora este termo seja tardio (século XV), seu conceito já está presente nos primeiros escritos apologéticos do cristianismo. Cf. David W. Bercot, [ed.], A Dictionary of Early Christian Beliefs (Peabody, MA: Hendrickson Publishers, 2003), xiii.

15. Walter Bauer foi o pioneiro a chamar a atenção para a falta de unidade doutrinária nos primeiros séculos do cristianismo (Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity, eds. Robert A. Kraft, Gehard Krodel [Philadelphia: Fortress Press, 1971]). Mas hoje reconhece-se que, embora seu insight esteja correto, houve um exagero em suas conclusões. Ele chega a afirmar que “os hereges eram maioria em relação aos ortodoxos” (p. 194). A tendência atual, conforme observa J. R. Flora – que fez uma tese sobre o trabalho de Bauer, é que, a despeito da diversidade, havia uma unidade de pensamento nalguns pontos centrais que permitia configurar o que constituía pensamento cristão ou ensino dissidente. Cf. Jerry Rees Flora, A Critical Analysis of Walter Bauer’s Theory of Early Christian Orthodoxy and Heresy, PhD Dissertation (Louisville: Southern Baptist Theological Seminary, 1972).

16. Compare, por exemplo, o uso do termo em Dionísio de Alexandria (Fragmentos extensos V, 15) e Dionísio de Roma (Contra os sabelianos 1).

17. A. Roberts., e J. Donaldson, [eds] Ante-Nicene Fathers (New York: Charles Scribner’s Sons, 1913), esta coleção antiga traz uma tradução em inglês dos textos patrísticos. H. Lubac, J. Danielou, et. alli, Sources Chrétiennes (Paris: les édition du Cerf, 1941), esta é a mais importante coleção de textos dos Pais da Igreja. Ela traz o texto original em grego, latim, copta etc. ladeado de uma tradução para o francês. Além disto apresenta as variantes que possam existir entre um e outro manuscrito. Salvo indicações em contrário, vamos seguir aqui a numeração da Ante Nicene Fathers.

18. Tertuliano, Sobre a Modéstia, XXI.

19. Orígenes, Dos Princípios, I, 3,2. O original grego perdeu-se; o que nos resta são pequenas citações e uma tradução latina feita por Rufino. Assim, é possível que Orígenes tenha utilizado o termo TriadoV que veremos nos textos de Teófilo de Antioquia.

20. Teófilo, A Autólico, XV

21. Clemente, I Epístola aos Coríntios, XLVI.

22. Eusébio de Cesaréia, História Eclesiástica, III, 36, 5-11.

23. Inácio, Epístola aos Tralianos, VII, (recensão curta).

24. Idem, (recensão longa). Para uma revisão bibliográfica do debate acerca das recensões textuais de Inácio, com acentuada defesa da recensão longa, veja Ch. Monier, Où en est la question d’Ignace d’Antioche? Bilan d’un siècle de recherches 1870-1988, in Aufstieg und Niedergang der römischen Welt [Hildergard Temporini e W. Haase, organizadores] (Berlim e Nova Iorque: Walter de Gruyter & Co., 1993), II. 27.1, 359-484.

25. Justino, I Apologia, VI.

26. Atenágoras, Súplica pelos Cristãos, X.

27. Idem, XI.

28. Idem, XXIII

29. Ireneu, Contra Heresias, V, XI, 2

30. Idem, IV, XX, 2 e 3.

31. Hipólito: Fragmentos de Comentários, 10 (ANF, vol. V, 174.)

32. Hipólito, Contra Noeto, 14.

33. W. Walker, História da Igreja Cristã (Rio de Janeiro: JUERP/ASTE, 1980), 105.

34. Cipriano, Epístolas, LXXII, 5.

35. Idem.

36. Bárbara Aland, et. alli., [eds], The Greek New Testament, Forth Revised Edition (Stutgart: Deutsche Bibelgesellschaft /United Bible Societies, 2001), 819.

37. Cipriano, Tratados, I, 6

38. E. G. White, Ibid., p. 580.

39. Idem, p. 56.

40. Bernard Lohse, A Fé Cristã Através dos Tempos (São Leopoldo, RS: Sinodal, 1981), 57.

41. Uma reprodução da carta de Constantino pode ser encontrada em Eusébio de Cesaréia, Vida de Constantino, II, 64-72.

42. Um exemplo está no livro de Ricardo Nicotra, 88.

43. O texto original em grego com uma antiga versão latina encontra-se em Henrique Dezinger e Clemente Bannwart, Enchiridion Symbolorum – definitionum et declarationum de rebus fidei et morum Friburgo: Herder and Co., 1922, , p. 29 [credo 54].


Fonte: Parousia, ano 4, nº 2 (2º semestre de 2005), p. 31-39. Usado com permissão.